segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Canto da Cigarra


Tenho tentado decifrar ao longo desses anos - mais de 25 -, o porquê de Simone estar tão impregnada em minhas trilhas sonoras; e a resposta que me vem, nada mais é que um silêncio sinfônico estrondeante. Às vezes, chego a pensar que um artista sofre a mitificação pelo processo contínuo de supervalorização de seu trabalho - e como sofre. Muitos outros são endeusados não só pela mídia, mas também pelo excesso de roupagem que lhe dão. Simone, por exemplo, é uma artista que transcendeu a esses quisitos de imagem, e se tornou exímia por sua voz. Dona de um acorde grave e visceral, mesclado com seu carisma e sensualidade, ela tem se firmado com eminência na nossa tão decaída MPB, produzindo discos e shows impecáveis. Aos 60 anos de idade - e 37 de carreira -, consegue demostrar no palco que o artista amadurece junto com seu público, e que a simetria formada entre a plateia e ela faz com que o show seja radiante de luz e felicidade. Ela já se firmou no cenário musical, não somente com seu "Começar de novo", mas com suas temáticas românticas e intrísecas sobre o amor e a paixão.
Quando ouvi Simone pela primeira vez, pareceu-me algo tão extraordinário - tal qual pareceu ao mundo a chegada do homem à lua -, poeticamente falando. Formou-se um rio em minha face e a sonoridade de seu canto adentrou minha alma, floresceu lótus em meu deserto... alagou o meu sertão. Nunca mais consegui me desvencilhar de suas melodias. E confesso que tenho aprendido muito com elas. Foram tantos os momentos marcados por esta voz, desde "Você é real" - minha primeira trilha sonora destinada a um romance - até "Migalhas" - último fragmento de uma paixão - sempre fiz escalas em suas canções, como se eu quisesse sempre voar, ou - como diz a letra de Vander Lee - estivesse sempre "Esperando aviões".
Vem aí - com lançamento em setembro - mais um DVD acompanhado de um CD Ao Vivo, gravado lá em Recife, do Show "Em boa companhia". Tive o privilégio de assisti-lo por duas vezes, no "Rio/Canecão" e aqui em "Poa/ Sesi". Esse show "Em Boa Companhia" marca o lançamento de seu novo disco, Na Veia. Estavam no roteiro as doze canções do CD, além de sucessos e canções nunca cantadas pela Cigarra, como Perigosa, sucesso das Frenéticas. Simone comoveu o público que lotou o Canecão e também o Sesi ao interpretar, de seu repertório, a canção Face a face. Outro grande momento do show foi o encerramento, com uma versão intensa e quase à capela de Chuva, suor e cerveja. Já no bis a cantora - que impressiona pela elegância e beleza - trouxe à cena Martinho da Vila, que estava na plateia, e dividiu os vocais com Simone no samba Canta canta minha gente, lá no Canecão, porém, aqui em Porto Alegre, fez um belíssimo encerramento com Ex-amor de autoria do próprio Martinho.
Para mim, fica a certeza de duas coisas: meu eterno amor por Simone e sua arte e a emoção registrada do primeiro encontro. Depois disso, compreendi porque Simone é a mais completa cantora brasileira: porque ela exibi o carisma das grandes estrelas, grande na voz, imensa na emoção com que se entrega às músicas, ao espetáculo e, em consequencia, ao seu público. Posso afirmar que, a partir de agora, tudo que vier vem bem. Claro, não tem como a gente resistir ao olhar profundo de alguém que a gente ama, por isso "Olhe bem nos olhos da morena e veja lá no fundo
a luz daquela primavera..."


Eis o tão esperado trabalho dela...

domingo, 2 de maio de 2010

Traças da Paixão



Chovia torrencialmente naquela manhã de carnaval, e as lágrimas que rolavam em seu rosto ajudavam a umedecer o ar em sua volta, fazendo com que as horas se tornassem mórbidas e o clima outonal. Mas, para ela, era como se fosse quarta-feira de cinzas. Não percebera, mas estava condicionada a sair de barco pela casa ou ser naufragada em seus prantos. Há dias já vinha assim, triste, doída, e não ria; ou se ria, era para dentro tal como costumava tossir.
Sua agitação era grande, extraordinária, e do fundo de sua alma emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. Acendia velas, rezava terços, tomava passes e se benzia toda vez que olhava pela vidraça e via, por entre os prédios, a imagem dele, o causador de seu desatino. Ele se chamava Herculano, cujo apelido lhe será dito na devida hora para que não o pegue de surpresa. Via-o como se fosse um deus grego, em beleza e magnitude, embora soubesse que não passava de um mortal. Amava tanto aquele homem que por ele era até capaz de por fogo em Roma; se Nero não o tivesse posto e, claro, se estivesse vivido naquele tempo.
Chamava-se Benedita e gozava dos seus cinquenta e tantos anos, isso na certidão de batismo, pois nos olhos trazia seus quarenta e poucos, como costumava dizer. Tinha uma pele branca e opaca, tal qual o brilho opaco de seu olhar. Seus cabelos amarelados denunciavam o tempo que já vivera e as tantas vezes que os coloriu em busca de um rejuvenescimento, pois não aceitava a ideia de que o tempo é implacável. Já vivera algum romance, mas o que ela notava era que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos; era, como lhe dizia um amigo, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, e ir a outras(1). Mas esse balbuciou a sua alma, dando-lhe o que não achou na solidão da noite, nem nos tumultos dos dias. Por isso, trazia consigo as insígnias da paixão que, mesmo nas horas de distração, não conseguia se desvincular dos clichês cujos sinais eram perceptíveis a qualquer um que a ela prestasse ouvido. Jurava e tresjurava seu amor a ele. Lembrava-se de coisas bizarras, quase insignificantes, mas que para ela tinha uma importância tamanha, que era capaz de se lançar nos mares bravios da imaginação, em busca de provas, para fazer se materializar aquilo que ela presumia ser real.
Dividia-se em dois mundos, mas não tinha certeza absoluta em qual deles estava, quando bateu a sua porta Herculano.
Bradou desesperada: - Santo Cristo! Que é isso? -, quando viu que, em meio a todo aquele alvoroço festivo de carnaval, aparecia a sua frente, ele, trazendo consigo um embrulho; que nem entregava a ela, nem o abria. Pensou até em mandá-lo entrar, mas não teve coragem para pronunciar nenhuma palavra. O silêncio predominou entre os dois por quase um século; quando que, para o coração, um minuto tem essa equivalência. Ajeitou o laço cor-de-rosa que trazia no alto de seus cabelos, e, com a outra mão, dava-lhe para cumprimentá-lo.
Nesse momento um turbilhão de coisas e imagens lhe veio à cabeça, suscitando-lhe os mais belos cânticos e poemas que ouvira e lera em toda a sua existência. Era capaz de recitar Vinícius, Cartola, Pixinguinha, Noel, Lupicínio e tantos outros, sem perder de vista a cena que se transfigurava aos seus olhos naquele momento. A magia do amor - pensava ela -, em voz que alardiava o seu interior e clareava dentro de si, feito néons das cidades modernas, é capaz de unir os seres na sua plenitude. Tresvariava, quando Herculano, contundentemente, entregou-lhe um pacote e lhe disse adeus.
Queria lhe falar do seu amor, do quanto estava viva a chama da paixão em seu coração e, mesmo não correspondida, era para ele que se fazia viver. Ia desvelar tudo o que trazia nos porões de sua alma, e que agora pairava em suas idéias como uma águia, pronta para atacar a sua presa. Mas quis o destino que escorresse por entre suas mãos e desaparecesse em frente a seus olhos o tão derradeiro momento, e ela, irrompendo de seus delírios, jogou-se ao chão, aos berros, aos prantos, em desvario, rogando por piedade, clamando por justiça. Partiu daí um silêncio indizível, pois ele nem havia dobrado o quarteirão, quando ela retomando os gritos, urrava feito uma fera.
– Não! Não! Não! Berrava e soluçava, pois tinha agora em suas mãos a prova definitiva de que ele, seu grande amor, estava nos braços de outra; enquanto que ela sonhava ser levada ao altar, trazida em uma carruagem num lindo vestido rosa, com flores de laranjeira e todos aqueles aparatos que via em filmes e novelas.
Causou um grande tumulto em seu condomínio, que até uma senhora surda, do andar de cima do seu prédio, foi para a janela, levada pela agitação, pelo espanto que seu comportamento gerou. Quis rogar pelo amor de Deus, por Nossa Senhora que está no céu, mas se lembrou que Nossa Senhora não merecia desgraça e desgraçada era como estava se sentindo naquele momento. Junto ao pacote, em suas mãos, estava um bilhete que não o relatarei; não por falta de coragem, mas para poupar-lhe dos impropérios.
Foi assim, num piscar de olhos, que ela passou do carnaval para os finados. Não tinha disposição nenhuma, quanto mais ao lembrar que dentro daquele pacote ainda permaneciam todos os mimos que, enamorada, deu de presente ao seu amado; um ursinho de pelúcia cor-de-rosa, um par de chinelos, duas ou três cartas de amor, umas peças íntimas e, no auge do romance, uma foto 3x4 sua, tirada no século passado, uma caneta prateada cuja gravação dizia “eterno enquanto dure”, e que, pelo visto, nem havia sido usada por ele. Presentes esses que, Benedita, sentia agora mais revolta do que prazer em ter presenteado.
Via as águas de março fechar o verão e renascer dentro de si a primavera temporã, cujas formas e nuances ainda iriam deflorar. Pressentia uma força sobrenatural reacender o ímpeto de seus desejos e trazê-la novamente à vida. Divagava entre o sonho e a realidade, via-se submersa num oceano de incertezas, num emaranhado de ideias.
Nesse momento parou para pensar em sua vida e refletir sobre ela. Disse para si mesma: - agora vou mudar. Olhou-se no espelho, e pela primeira vez sentiu o peso de sua idade. Seu corpo já não era tão modelado como imaginava; por dentro das roupas vinha se apresentando uma segunda barriga, e seus peitos começavam a ceder às leis da gravidade. Sua pele estava ressecada e com algumas rugas bastante visíveis. Não se sentia feia, mas para bela estava longe. Então, afirmou, olhando para aquela outra pessoa que se fazia presente dentro de si e refletida no espelho:
- chega de Benedita, a partir de hoje serei Helenita, cognato de Helena, mulher de Menelau, rei grego, que foi raptada, e ele e seus companheiros provocaram a Guerra de Tróia para reavê-la. Serei mãe de meus pensamentos e precursora de meus ideais, pois farei valer em mim o princípio da sobrevivência do mais forte, nada me deterá. Não mais sofrerei por amor, e os homens rastejarão por mim. Erguer-me-ei e renascerei das próprias cinzas, como a Fênix, tornando-me vitoriosa, bela e onipotente. Terei o mundo aos meus pés, e por onde eu passar os homens se curvarão aos meus olhos.
Prezado leitor, não sei se não era melhor ter deixado as coisas como estavam; como também não sei se isso não seria pior. As mudanças foram drásticas demais, causando uma turbulência patológica, em que se via nela a necessidade de se sobressair. Passou a ir quinzenalmente ao seu ginecologista, ora alegando dores, ora se sentido doída. Começou a ter dor forte de cabeça - longe de ser enxaqueca -, o que suas explicações eram ininteligíveis à medicina.
Entrou numa academia, passou a fazer meditação; acreditava na filosofia oriental, reverenciava yin-yang e cultuava ao taoísmo. Desde então, passou a ver o mundo com outros olhos e renasceu para a vida, embora continuasse a ir semana sim, semana não ao seu médico. Formou-se uma dependência psicológica a qual ela não conseguia se desvencilhar e nem fazia força para conseguir. Gostava de alimentar seu ego com as idas ao ginecologista e, mais ainda, com o resultado que ela estava obtendo.
Fez uma revolução helenística em sua vida, apoderando-se de um período histórico para demarcar a sua nova fase. Foi a uma concessionária e comprou um carro zero km. Suas mobílias, que mais pareciam retratar o século XIX, agora eram as mais modernas do mercado. Entrara de vez na era dos cds e no mundo digital, adquiriu um Note-book e um celular; quando não estava de olho num, estava a falar no outro. Conheceu gente da alta sociedade, até participou de alguns eventos com celebridades locais. Por alguns instantes, chegou a ter a ideia de montar um brechó - de tantas quinquilharias que havia acumulado ao longo de sua existência. Mas achou melhor doar, e doou tudo. Foi matricular-se numa autoescola, pois estava de um jeito que, quando passava, motoristas profissionais cometiam muitas irregularidades, por ser demais o seu atrevimento ao volante.
Estava numa fase zen, adepta a toda forma de filosofia e elevação espiritual. Perdera as contas de quantos passes, sessão de umbanda, cartas e tarôs já havia recorrido. Até ao Pai João, um charlatão de quinta, que dava atendimento lá nos quintos e cobrava o olho da cara, ela já tinha ido e, o que é pior, vinha sempre convencida dos seus poderes e clarividências.
Um dia, ao consultar uma cigana muito amiga de uma amiga, após ler sua mão, disse-lhe: - Filha, ele está para voltar.
Helenita teve um mau súbito, ficou imóvel por um bom tempo e, se não fosse à respiração ofegante, daria para se dizer que estava em transe, em estado visionário. Demorou a retomar os sentidos, pois, parecia lhe arrebatar uma força sobrenatural. Quando voltou a si, afirmou com contundência que fora abduzida e transladada para junto da nave-mãe. Ninguém contestou, pelo contrário, teve até quem desse credito a sua alucinação. Porém, antes de ir embora, pediu à cigana para ratificar o que lhe dissera. Queria ter certeza de que alguém viria, mas, quem era não sabia, e nem a clarividência poderia atestar.
Os dias foram passando - deu-se natal, ano-novo -, e iniciou-se o mês de março. Tão logo seria carnaval novamente, e a cidade inteira se renderia à batucada e aos desfiles das escolas de samba. Um tempo ocioso estava por vir, e Helenita estava muito intrigada com o que lhe foi dito pela cigana e, mais ainda, pela forma como reagiu mediante à revelação. Dava em não mais dormir à noite, passando em claro muitas madrugadas. Tinha pesadelos quando conseguia uma horinha de sono; às vezes, retratava detalhadamente em contos oníricos, tudo o que vivenciava naquele curto espaço de tempo em que suas pálpebras lhe permitam um descanso fantasmagórico.
Inconformada pela forma como estava sendo compelida a aceitar os acontecimentos em sua vida, foi procurar auxilio em um centro espírita. Poucos davam importância as suas histórias e contatos com Et´s. Uns até diziam ser ela doidivana, por isso, merecia um pouco de atenção para não piorar de vez. Lá, porém, ela se autoafirmou como sensitiva. E foi onde conseguiu acalmar os seus medos e ansiedades. Agora não mais falava em Óvnis, nem em coisas que costumava antever, mas tinha alucinações frequentes.
Vivia para o amor e para a caridade. Ouvia música clássica, e estava montando uma biblioteca particular de livros psicografados e obras espíritas. As idas ao ginecologista passaram a ser bimestral e, semanalmente, era ela quem o recebia em sua casa. Quando as noites eram mal dormidas, complacentemente as aceitava e, sem resignação alguma esperava o amanhecer. Tinha vezes em que se perdia, pois seu relógio biológico não condizia com as horas demarcadas nos fusos horários e, por muitas vezes, anoitecia dentro de si antes mesmo do meio dia.
Num certo dia, no final das férias de verão, o interfone toca. Ao atendê-lo é notificada por um telegrama. Desce para recebê-lo e, na volta, antes mesmo de fechar à porta, começa a lê-lo. Nem teve tempo de pensar em nada, indo direto ao assunto: “Bem, estou morrendo de saudade. Ass. Nenê”. Foi só o que leu, e era só o que havia para ser lido. Indagou a si mesma, quem poderia estar morrendo de saudade? Pouco havia para descobrir, pois o subscrito trazia um pseudônimo desconhecido e um endereço fictício. Do jeito fagueira como andava, não quis se desgastar à procura do tal remetente, tampouco deu importância às palavras dele. Estava para comemorar seu aniversário, e todos os preparativos e pompas eram destinadas a ele e a viagem que lhe daria de presente. Por isso, em nada se sentiu abalada com a mensagem, mesmo que vinda assim, tão repentinamente. Foi ate à cozinha, pegou um copo de água e tomou juntamente com um calmante.
Feito isso, foi se preocupar com os preparativos da viagem. Certificou-se de que não faltava nada, pois queria de vez fechar as malas e só voltar a abri-las no hotel. Era muito meticulosa e organizada, não permitindo qualquer deslize em sua trajetória. Às vezes, bastava uma coisa fora do lugar para que ela desfizesse tudo e começasse a reorganizar. Em sua casa, até as almofadas padeciam ao olhar crítico e perfeccionista dela. Tudo tinha que estar nos conformes, tanto que uns chegavam a dizer que se parecia com casa de boneca aquele lar. Sentia-se feliz assim, mesmo tendo que conviver com a solidão dos dias e com a visita semanal do referido médico. Mais tarde, já no banho, sentiu um formigamento nos pés, uma sensação de levitação, um resfriamento no corpo.

Depois desta peripécia, numa manhã de domingo de Páscoa, a rodoviária é surpreendida com a chegada de turistas que vêm à capital participar de um Fórum Mundial sobre Educação. Os taxistas alvoroçados começam a disputar passageiros, uns furam a fila, outros saem em desatino à procura de pontos estratégicos onde os passageiros pudessem ser atendidos sem incômodos. Nesse instante, para piorar ainda mais a situação, chega um ônibus vindo do interior. Os passageiros começam a desembarcar, se aglomerando junto aos turistas e se debatendo entre pessoas e bagagens. Um caos para uma manhã que até a pouco estava tranqüila e pacata naquela estação. Ninguém poderia prever tamanha algazarra, principalmente por se tratar de um feriado, mas, aos poucos, as pessoas foram se dissipando. O desfecho deste episódio da rodoviária é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez páginas de exposição; mas contento-me com uma, que será o remate da narrativa (2).
Atônito, chega até a porta do táxi um passageiro e pede para ter cuidado com as suas malas. Pelo tom de voz, percebe o motorista, que se trata de um sujeito sério e de poucas palavras. Siga para o Alto Petrópolis, disse-lhe o passageiro com voz áspera e rosto franzido. No caminho, o motorista quis lhe falar do mau tempo que encobria a cidade, mas percebeu que o cidadão não estava para conversa e, para distrair, ligou o rádio numa dessas emissoras populares. Pelo retrovisor, viu que o passageiro não se agradou e mudou de estação, sem fazer alarde. A viagem seguia calmamente, apenas a música no rádio quebrava o silêncio que parecia perene. Após rodarem uns vinte minutos a corrida chegou ao fim.
- É aqui, aqui mesmo, disse o passageiro.
- Quanto lhe devo?
- Vinte e oito reais.
- Nossa! Que roubalheira, dali aqui deu esse absurdo!
Pegou as malas e foi se dirigindo para dentro do condomínio. No percurso encontrou um grupo de senhoras sentadas ao sol, e a elas abanou como se fosse íntimo do lugar, das pessoas. Chegou até a cumprimentar um senhor de meia idade que saia pela porta que ele acabava de entrar. Parou, deu uma ajeitada no cabelo, arrumou a gola da camisa e subiu. Tocou a campainha uma, duas, três vezes, como ele costumava fazer, e foi surpreendido quando a porta se abriu. Olhou na altura da porta para confirmar se o número era aquele mesmo 202, pois achou que estivesse treslido e, por isso, não estava associando o apartamento com a proprietária. E, ainda não estava em si, quando, na porta, uma crioula gorda e de vassoura na mão lhe indagou:
- Ó gente! Que é isso? Nem nos domingos se pode ter sossego. - Olha, já vou lhe adiantando, se é venda, tô fora. A vida tá difícil, tô com o aluguel atrasado, e os meninos ainda dormem por não ter o que dar a eles de Páscoa. Disse isso e fechou a porta bruscamente. Mas ele, insistente e indignado, tornou a bater.
- Pronto! Desembucha “ômi”, o que quer? - Diga logo, porque tenho mais o que fazer e não posso acordar os meninos com trololó na porta.
- Minha senhora, me desculpe. Venho a procura de Benedita cujo endereço a este confere.
- Virgem! Há tempo que não a vê.
- Como sabes disso? - Por acaso, és vidente?
- Ora, bolas. Basta ser preta e pobre que já acham que a gente é charlatona, vigarista, macumbeira, vidente e outros cambaus. Mas saiba que não, sou honesta, mas isso não lhe vem ao caso. Se de fato quer com ela falar, vá a Paris, pois, antes das apresentações das sinfonias de Bethoven, Mozart e Shumann, ela deixou dito que não virá. Tá de namoro com seu ginecologista, e se mudou para a zona nobre da cidade. Ah, e antes que eu me esqueça, Benedita agora se chama Helenita.

Nas alturas, entre turbulências e enjoos, Helenita escutou a voz do comandante anunciando que apertassem o cinto, pois estavam próximos do aeroporto e a aterrissagem era iminente. Não se conteve de felicidade, pegou na mão do seu amado e juntos comemoraram aquele momento indescritível. Para ela era uma experiência edênica, pois via ali o paraíso e as suas glórias. Sempre vislumbrou Paris, e estar na França era a realização de um sonho antigo, uma quimera. Combinaram que após deixarem suas malas no hotel iam diretamente ao Louvre, pois estava renovada com o céu e ares parisienses. Nem se abalou com a notícia de que suas malas foram extraviadas, tampouco em saber que as reservas não foram confirmadas. Estava em êxtase para se preocupar com coisas insignificantes naquele momento. Acomodaram-se próximo dali e, num instante, já estavam subindo os degraus do museu mais famoso do mundo.
Impaciente, Helenita queria ver a preciosidade de Mona lisa, nem se deparou a admirar a pirâmide de vidro projetada para unir o passado ao presente, num símbolo de secularidade ao novo milênio. Guiada pela intuição foi direto ao quadro. Ficou horas a admirá-lo, fez todo o tipo de observação, fez comentários insolentes. Disse para si mesma que não tinha aquele olhar sarcástico e levemente debochado que via pintado no rosto daquela mulher. Chamou pelo seu companheiro que estava em outra galeria, e juntos contemplaram estarrecidos tudo o que os olhos admiravam. Deixaram muitas coisas para serem vistas e, apressadamente, foram ao símbolo da França. Lá chegando, estava ela toda iluminada, a Torre Eiffel esplendorosa, secular e inspiradora poética de muitos românticos. Helenita quis subir à torre, mas foi informada de que não havia possibilidade, pois ela estava sendo reformada. Ficou imóvel a contemplar aquela arquitetura, e as batidas de seu coração podiam ser ouvidas a quilômetros. Não conteve as lágrimas, aproximando-se de seu ginecologista - como via no cinema -, roubou-lhe um beijo. Espantado com a iniciativa inesperada de Helenita, ele mal pode retribuir, deixando a desejar aos ímpetos da amada.
O celular tocou, ela atendeu e foi notificada por uma aeromoça de que suas malas haviam sido encontradas. Percebeu que precisava se refazer, tomar um banho, e suas roupas, agora encontradas, iriam lhe cair bem. Foram buscá-las e depois se dirigiram ao hotel.

No banho, enquanto se ensaboava, ouviu janelas baterem. Uma ventania anunciava mudança do tempo. Faltou luz. Quis se desesperar, e viu sangue correr por entre o ralo no piso. Sentiu dores fortes pela cabeça, não se lembrava onde estava, nem reconheceu as cores vivas nas paredes do banheiro. Sozinha ali, pressentiu estar chegando a sua hora, os olhos escureceram-se e condoída chamou por um nome: Herculano.
Em frente ao leito em que ela se encontrava, médicos davam o diagnóstico da paciente a ele, diziam que fora socorrida na hora certa e salva por um milagre. Perdera muito sangue com o ferimento causado por um estilhaço de vidro em sua cabeça, pois havia batido com a nuca na basculante do banheiro, já em estado alucinógeno.
Estava em observação, porque tivera uma crise alucinante onde insistia que a receita de um medicamento era seu passaporte e, que as antenas de transmissão digital, vista pela janela do quarto hospitalar, era a Torre Eiffel. Dizia que faltava uma mala, logo a que estava o seu vestido rosa rendado, pois era com ele que iria se casar em Paris. Os médicos proibiram a visita de Herculano. A paciente só teria alta dali a uns cinco dias e, para bem de sua saúde, ninguém poderia interferir em seu tratamento, nem ao menos com uma visita.
O que aconteceu depois deste fato, não cabe a ciência humana e nem a um conto relatar, pois o coração tem lá as suas razões, e as traças da paixão estão impregnadas a ele.

*(1) e (2) citações de Machado de Assis.

Conto AUTORAL: Fernando Caiel